Em 2010, o grupo de ativistas digitais “Manaus de Olho”, formado por jovens blogueiros e tuiteiros localizados na capital do Amazonas, questionava a criação da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD), um novo imposto que estava sendo discutido pela Câmara Municipal de Manaus (CMM). O grupo buscava maior transparência sobre a arrecadação e os gastos públicos, e suas ações estavam ganhando destaque na cidade.
Passados 15 anos, a história do “Manaus de Olho” ainda é uma reflexão crítica sobre a relação entre poder, informação e violência, pois a luta pela transparência logo se transformaria em uma luta pela sobrevivência.
Na véspera de eleições para o Governo do Amazonas – ocorrida em 03 de novembro daquele ano -, um ataque violento marcou a trajetória do grupo. Naquela noite, membros do grupo decidiram sair de um bar numa região movimentada da cidade para ir à casa de um dos patronos, para não burlar a lei seca. O grupo se reunia frequentemente para confraternizar e planejar novos atos e ações na mobilização para sensibilizar a população contra o novo imposto criado por parlamentares estaduais, como reuniões, distribuição de panfletos, e conversas em locais públicos sobre o tema.
Já aprovada pela Câmara Municipal de Manaus, a polêmica “taxa do lixo” gerou revolta e mobilizou centenas de pessoas contra mais esse golpe ao bolso da população. Considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) devido à falta de critérios claros para mensurar a quantidade de lixo produzida, a cobrança foi vista como um escândalo e um assalto disfarçado de lei.
A revolta tomou força nas redes sociais, especialmente no Twitter, onde cidadãos indignados começaram a expor os vereadores responsáveis pela aprovação da taxa. Conforme texto publicado pela jornalista Lilian D’Araújo no Jornal do Commercio, de 21 e 22 de fevereiro de 2010, a primeira ideia foi estampar os rostos desses políticos em outdoors espalhados pela cidade, mas nenhuma empresa aceitou o serviço, temendo represálias.
Isso não impediu os manifestantes, que partiram para uma alternativa ainda mais impactante: a impressão e distribuição de mais de 50 mil panfletos denunciando os autores desse novo imposto. Segundo um dos organizadores, mais de 40 mil já haviam sido entregues em terminais de ônibus e shoppings da cidade.
Determinados a não deixar que essa injustiça passasse despercebida, os ativistas também criaram o site e o microblog “Manaus de Olho”, onde continuaram a campanha de denúncia e resistência através da “panfletagem virtual”. O perfil no Twitter rapidamente atraiu mais de 500 seguidores, ampliando a pressão contra os responsáveis por aquela então apontada como vergonha legislativa.
Para garantir que os panfletos fossem lidos e não descartados, os organizadores usaram uma estratégia inteligente: no verso do material, imprimiram a tabela oficial dos jogos da Copa do Mundo daquele ano, garantindo que o conteúdo chegasse ao maior número possível de pessoas.
Assim, após o início da festa na casa de um dos ativistas, dois membros, já ameaçados de morte, foram os últimos a chegar e, em menos de uma hora, todos foram surpreendidos por três assaltantes, que chegaram atirando para o alto, fazendo 16 pessoas reféns.
A partir daí, os membros do grupo foram forçados a se deitar no gramado da casa, sob ameaça de morte, e passaram por momentos de tensão extrema. “Às duas da manhã, pelo que me contaram, eu trocava um disco no carro, dentro da garagem da minha casa, quando a minha esposa correu na minha direção. — É um assalto! Olhei para o portão, e meus amigos eram empurrados por três homens para dentro, todos armados e com camisetas na cabeça. Um deles me empurrou, anunciou o assalto, e a meio metro do meu rosto, atirou pro alto”, relatou um dos blogueiros à época ao blog de Luis Nassif.
O assalto durou mais de três horas e envolveu agressões físicas e psicológicas. Enquanto os homens estavam trancados no banheiro e as mulheres no quarto, o clima de pânico e desespero tomou conta de todos. Muitos imploraram por socorro, temendo pela própria vida e a das pessoas ao seu redor. O silêncio que seguiu, interrompido apenas pelas ameaças dos assaltantes, parecia se arrastar como uma eternidade. O medo de uma execução coletiva pairava no ar, enquanto os reféns, com a respiração contida, aguardavam que algo, ou alguém, os salvasse daquele pesadelo.
Enquanto suportavam, os prisioneiros perceberam que os assaltantes trocaram o cd do carro, por uma música mais aprazível para eles, enquanto saqueavam a casa em meio à tortura das mulheres. As vítimas demoraram a sair do banheiro, já que a música tocava, mas, em desespero, começaram a buscar as mulheres no outro cômodo, localizaram um telefone celular deixado por eles e, finalmente, ouviram gritar, de fora da casa, que um cerco havia se formado. Enfim, responderam: “Eles já foram”.
A partir daquele momento, o grupo decidiu suspender suas atividades, temendo por suas vidas. Muitos membros se mudaram de cidade, de estado, ou até mesmo para outros países, silenciados pelo medo. Assim, apesar de passados 15 anos desde o ocorrido, embora registrados por todos os reféns e familiares, o caso nunca foi solucionado.
Além disso, após o assalto, uma campanha de assassinato moral foi orquestrada, com membros sendo alvo de diversas acusações falsas. Uma das vítimas respondeu a 21 processos, cíveis e criminais, gerando dívidas, mesmo diante de vitórias jurídicas. Além disso, periodicamente, “os autores” parecem ressurgir no cenário, tocando no assunto de forma a alertar qualquer um que ouse questionar o que aconteceu.
Embora o movimento “Manaus de Olho” não exista mais como antes, os membros do grupo continuam observando e interagindo com a sociedade. O desejo de questionar os gastos públicos e buscar maior transparência persiste, mas as dificuldades para realizar essa tarefa em um ambiente de controle político e falta de liberdade de imprensa continuam a ser um obstáculo.
Cronologia dos eventos:
A série de eventos violentos sofrida pelos membros do “Manaus de Olho” parecem estar profundamente interligados, e essa relação pode ser compreendida como parte de um esforço coordenado para silenciar o grupo e enfraquecer sua capacidade de questionar as autoridades, principalmente no que diz respeito à transparência pública e aos interesses políticos e financeiros em jogo.
- Assalto de 2010: O assalto com 16 reféns na casa de um dos membros do grupo foi o ponto de inflexão. Embora a motivação exata por trás do ataque não tenha sido esclarecida de imediato, ele pode ser interpretado como uma tentativa de intimidar o grupo e desmoralizá-lo. O fato de que esse assalto ocorreu na véspera de uma eleição, quando o grupo estava publicamente questionando a criação de um imposto e exigindo maior transparência fiscal, sugere que o ataque foi uma resposta direta ao trabalho de ativismo político do grupo.
- Campanha de assassinato moral: Após o assalto, a situação se agravou com a campanha de assassinato moral contra os membros do grupo. As ameaças de morte e a tentativa de destruir suas reputações através de meios judiciais e exposição em veículos de imprensa indicam que havia um esforço intencional de esmagar qualquer resistência à autoridade vigente. As ameaças físicas, como as tentativas de sequestro e os roubos a residências, intensificaram ainda mais o ambiente de terror e perseguição no período após o assalto.
- Processos judiciais e sentenças revertidas: O uso do sistema judicial para perseguir o grupo e reverter as vitórias legais nas esferas cível e criminal também aponta para uma tentativa de silenciamento sistemático.
- Efeitos psicológicos e mudanças de vida: Todos esses eventos culminaram em um desgaste psicológico intenso, que não só afetou as decisões pessoais dos ativistas, mas também os forçou a mudar suas profissões e até mesmo a fugir do estado para preservar suas vidas. A constante ameaça de violência e a pressão emocional tiveram um impacto significativo na trajetória profissional e pessoal dos membros do grupo, muitos dos quais abandonaram o ativismo por medo das repercussões.
- Interconexão dos eventos: Todos esses acontecimentos parecem ser peças de um mesmo quebra-cabeça, orquestrados por aqueles no poder para impedir que a oposição se organize e continue a questionar práticas governamentais. O assalto, a campanha de difamação, os processos judiciais, e as ameaças físicas e psicológicas estão todos relacionados por uma tentativa de silenciar o movimento, coagir os ativistas a desistirem de suas demandas e garantir que o status quo não fosse desafiado.
- Invisibilidade: O tratamento dado ao caso do assalto com reféns do grupo “Manaus de Olho” pela imprensa na época também chamou atenção. No dia seguinte ao assalto, em 3 de novembro de 2010, os noticiários locais estavam omissos em relação ao crime que fez 16 reféns em um bairro de classe média da cidade. Em vez disso, davam cobertura completa à reeleição de Omar Aziz, então no PMN e atualmente senador pelo PSD, ao Governo do Amazonas, destacando sua vitória com 63,86% dos votos válidos.