Na década de 1980, Manaus, capital do Estado do Amazonas, testemunhou o surgimento das “galeras”, grupos juvenis compostos majoritariamente por adolescentes e jovens de 10 a 30 anos, conhecidos como “galerosos”. Esses grupos, formados em bairros populares, envolviam-se em confrontos violentos, utilizando facões como principais armas, em disputas por território e identidade nas ruas da maior cidade da Amazônia, ainda durante o início da Zona Franca de Manaus (ZFM), fundada em 1967, no terceiro ano do regime militar. Em contrapartida, frequentavam discotecas com suas turmas organizadas, tendo seus líderes como principais representantes no meio social.
Um registro histórico foi realizado na dissertação de mestrado de Marcos Roberto Russo de Oliveira, intitulada “Amizades, Porradas, Facadas e Caseiras Fumegantes: Uma História das Galeras de Manaus (1985-2000)”, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). No estudo, o pesquisador aponta que esses grupos não apenas protagonizavam atos de violência, mas também buscavam um senso de pertencimento e reconhecimento social, organizados em grupos para os quais a música e as vestimentas ditavam a moda, e motivavam roubos de roupas e tênis de marca, fomentando uma identidade periférica.
“Vários fatores levaram ao surgimento e à proliferação das galeras, inclusive a própria inquietação juvenil dos jovens da classe baixa de Manaus. Na tentativa de se divertir e imitar a audácia e rivalidade das gangues idealizadas que viam nos filmes, sobretudo em The Warriors – Os Selvagens da Noite, esses rapazes, moças e adolescentes acabaram forjando uma cultura juvenil de rua própria, onde quem não tinha galera era hostilizado e, quem tinha, era praticamente obrigado a participar de verdadeiras ‘batalhas grupais’. As reuniões que os membros faziam, segundo eles toda semana, assim como o próprio ritual de ir para as discotecas todo sábado e domingo, representavam essa preocupação com a própria identidade e preservação do grupo, identidade esta que deveria ser diferenciada da de outras galeras, daí as brigas serem frequentes”, explica o pesquisador em artigo também publicado em revista institucional, a Canoa do Tempo.

Em seu artigo, Roberto analisa a influência do filme The Warrios, do diretor Walter Hill, lançado em 1979 e baseado no livro homônimo de Sol Yurick, que narra a história sobre uma gangue de Nova Yorque que é perseguida após ser acusada injustamente do assassinato de Cyrus, o lider da maior gangue da cidade que buscava unificar os grupos rivais. “Ninguém está matando ninguém”, disse Cyrus segundos antes de ser alvejado no centro de numa arena formada entre as gangues, sendo morto em palanque durante seu discurso final.
Dublado pelo estúdio Herbert Richers, o filme ganhou o título de “Selvagens da Noite” e foi exibido nos cinemas em Manaus. Para o pesquisador, o filme desencadeou o imaginário adolescente de excluídos. “A exibição de um filme na cidade chamado The Warriors – Os Selvagens da Noite, pode ser considerado um outro fator desencadeador dessas rivalidades”, destacou.
“Após terem assistido ao filme, começaram a andar em turmas, a desafiar turmas ‘rivais’ e a brigar com elas. Uniformes, passos de dança, símbolos gestuais, armas, rituais, reuniões, agressões, pichações, territórios e mortes começaram a ser ‘fabricados’, usados e praticados por, para e sobre esses jovens, tanto para identificá-los e uni-los, quanto para marginalizá-los e criminalizá-los”, explica o pesquisador, ressaltando o universo da indústria cultural, com a utilização de filmes sobre gangues de rua produzidos em Hollywood, nos Estados Unidos, sendo disseminada em outros países.
Figuras centrais do “movimento, DJ’s que organizavam festas em clubes locais e concederam entrevista aos entrevistados indicavam que o local preferencial para bailes frequentados pelos grupos era o Centro da cidade, distante das periferias, mas acessível a todos os bairros por meio de transporte coletivo e próximo às áreas portuárias. “[…] Brigas entre facções, porque na realidade não tinham nomes. Eram turmas que do mesmo bairro brigavam com a outra, e pelo fato de se encontrarem aqui no Centro, as confusões aconteciam aqui no centro […]”, diz Raidi Rebello, em entrevista ao pesquisador.
As galeras emergiram em um contexto de migração intensa do interior para a capital, impulsionada pela implantação da Zona Franca de Manaus e pelo abandono dos setores agrícolas, o que resultou em um crescimento desordenado da cidade e na formação de periferias carentes de infraestrutura e oportunidades. As atividades das galeras incluíam confrontos com grupos rivais, consumo de substâncias como cola de sapateiro e álcool, e ocupação de espaços públicos, como esquinas e danceterias. Embora nem todos os membros estivessem envolvidos em atos criminosos, a mídia local frequentemente os retratava de forma negativa, associando-os a gangues e criminalidade. As galeras buscavam se afirmar em meio à exclusão social.
Os jornais locais da época, como A Crítica, O Jornal, Diário do Amazonas e A Notícia, dedicavam espaço considerável à cobertura desses conflitos, que alcançou a mídia nacional, com reportagens frequentemente destacavam os confrontos entre galeras rivais, com relatos de brigas envolvendo facões, canivetes e outras armas brancas. Na edição de domingo do dia 04 de fevereiro de 2001, a Folha de São Paulo publicou matéria sobre a atuação de grupos de galerosos em Manaus, após a recente morte de um galeroso degolado por grupo rival, atestando que “noite de Manaus está sitiada pela ação das galeras, gangues de adolescentes que delimitaram territórios nos bairros pobres da cidade e cobram pedágios de moradores. Os grupos foram responsáveis por 42 dos 562 homicídios registrados em 2000 na cidade”.
A reportagem registrou depoimentos de que refletiam os pensamentos à época. A delegada Maria das Graças da Silva, da então Delegacia da Criança e do Adolescente, dizia que, além dos terçados, como são chamados facões na região amazônica, havia encontrado um adolescente com pistola alemã. “Mas a arma que eles mais usam e matam é a escopeta caseira”, disse. Outro depoimento, da vigilante de codinome “Vaca”, atestava a violência: “O inimigo que passa aqui é furado. Eu já furei uns cinco”, disse. “Alguém morreu?”, questiona a repórter, para ouvir um insolente: “Isso não me importa”, disse.
A ousadia dos grupos é afirmada por Roberto em sua pesquisa. “Mito e realidade (…) essa juventude manauara de galera de uns vinte, trinta anos atrás era, no mínimo, mais rueira, arruaceira, briguenta, audaciosa e perigosa que as anteriores e posteriores, ao menos de acordo com os resultados até aqui obtidos com esta pesquisa”, afirmou. Por fim, a reportagem confirma o problema: somente no ano 2000, os grupos foram responsáveis por 42 dos 562 homicídios registrados em Manaus, onde as galeras agrupavam 5.800 adolescentes numa cidade com então 24 mil jovens com idades entre 16 e 18 anos.
Moda
A cultura das galeras em Manaus, que emergiu nos anos 1980, não se restringia apenas aos confrontos violentos entre grupos rivais. Ela também se manifestava intensamente nas expressões culturais, especialmente na música. Os bailes organizados por DJ’s locais desempenhavam um papel central na vida desses jovens, servindo como espaços de socialização, afirmação identitária e, por vezes, palco para rivalidades.
De acordo com Roberto, os DJs foram figuras proeminentes nesse cenário. Eles eram responsáveis por animar os bailes, onde os galerosos se reuniam para dançar, exibir suas habilidades e fortalecer os laços dentro de suas galeras. Esses eventos musicais não apenas proporcionavam entretenimento, mas também reforçavam a identidade coletiva dos grupos e serviam como uma válvula de escape para as tensões do cotidiano.
A pesquisa de Roberto regista a entrevista com Raidi Rebello, DJ e radialista na Rádio Difusora do Amazonas, que organizava bailes no Cheik e no Bancrévea, duas danceterias da cidade. “A violência que havia na época era pro cara […] roubar os blusões da Yes Brasil […] o tênis L.A Gear, que era o ícone de consumo da garotada na época. Então, se reunia aquela turminha […] e tomavam as coisas da pessoa […]. Então, uma boa parte dessa atmosfera de medo vinha daí, na realidade não era das pessoas que estavam no clube, mas do pessoal que tava do lado de fora do clube, que assaltava, que fazia as coisas, cenas de violência com o pessoal que tava voltando pra casa, que tava indo pro terminal de ônibus, entendeu?”, ressaltou.
Assim, o modo de vestir também era um fator de identidade, mas não apenas. “O que os jornalistas também não sabiam, nem as autoridades, é que muitos desses jovens que integravam as galeras gostavam de pertencer a uma tur-ma, fosse porque as galeras viraram uma espécie de moda na cidade, fosse porque aquele que não andasse com um desses grupos era literalmente segregado. Diz um dos entrevistados para a pesquisa: “[…] Você chegava em qualquer bairro ‘ah, é da ‘Selvagem’, e tinha aquele… Num é? Aquela consideração, aquele respeito, ninguém te tocava. Então, todos queriam fazer parte. Pra quando chegasse dentro do Bancrévea, ser respeitada, né? Ser considerada, né? No meio dos chefões, que era difícil”, explica.
Esses jovens invejavam seus líderes, respeitados no bairro, e tentavam reproduzir seus feitos, ganhando o respeito deles. Com o tempo, mulheres passaram a querer entrar em galeras, com uma entrada marcada por ritual violento. “[…] As pessoas que queriam entrar, eram principalmente as mulheres, né? Tinham que provar que sabiam brigar meia hora de… Ela pegava peia de todo mundo (risos). Se ela aguentasse, ela ficava. Se não, ela não ficaria não (Informação verbal)”, diz Cláudia “Punk”, que admirava a líder Sheila, dos Selvagens.
Assim, as discotecas se afirmam como elemento relevante de espaço das galeras, acusadas de serem as principais responsáveis pelas confusões, assaltos, mortes e agressões que aconteciam na cidade. Mas, o DJ Raidi Rebello defende a integridade das festas.
“Nos clubes havia um sistema de segurança que não existia no resto da cidade. Por exemplo. Ah, você talvez já tenha ouvido, nas suas pesquisas, muita gente comentando sobre brigas, aonde voava mesa, cadeira, o diabo a quatro. Isso é uma mentira. Nos clubes, tanto no Cheik quanto no Bancrévea, a partir de 85, nunca teve mesa ou cadeira dentro do clube. Isso era uma coisa que não combinava com o tipo de música, com a discoteca. Mesa e cadeira pra quê, se ninguém ia ficar sentado? E era tudo garotada. […] Garrafas, desde 1985/1986, quando eu assumi o comando do Cheik, […] eu bani as garrafas do clube, porque isso na realidade era um perigo. Caí, cortar alguém, ou alguém usar a garrafa como arma, […] Então, existem algumas lendas urbanas que têm que ser tiradas, sabe? […] No centro da cidade as casas possuíam detector de metal, que nem a polícia tinha, na porta de entrada. Então, a maioria dessas batidas que a polícia dava, eram inócuas nesse sentido, porque o problema não tava dentro do clube. O problema tava fora, num é?”, diz trecho da entrevista com o também radialista.
Com o tempo, a influência desses DJs e dos bailes que organizavam transcendeu o universo das galeras, contribuindo para o surgimento de novos movimentos musicais na região, como o rap manauara. Esses gêneros musicais, embora distintos, compartilham raízes nas experiências vividas nas periferias de Manaus e refletem as transformações sociais e culturais ocorridas ao longo das décadas. Porém, a trajetória dos galerosos e a importância dos DJs em sua cultura evidenciam como a música e a dança foram, e continuam sendo, ferramentas poderosas de expressão e resistência para os jovens das periferias urbanas.
Leia mais:
Psol chama atos populares rumo à COP30, em desafio à gestão “Edmilson, prefeito”
Por isso mesmo, em meados de 2011, o atual senador do PSD, então governador do Estado, Omar Aziz, no PMN, anunciou a criação do Galera Nota 10, para promover a inclusão de adolescentes e jovens por meio de ações esportivas e culturais, admitindo e familiarizado a um problema. Nos registros mais tardios (já no fim da década de 1990), algumas reportagens passaram a indicar que os conflitos entre galeras estavam diminuindo, mas que muitos jovens estavam sendo cooptados por facções criminosas. Essa transição é analisada por Roberto como um “prelúdio” da expansão do tráfico organizado em Manaus.
O registro de novos crimes com facões nos últimos anos em Manaus comprovam a tese e mostram a evolução dos grupos de adolescentes, que rumaram para as facções criminosas como Família do Norte e Comando Vermelho, em Manaus, que serão motivo de outra reportagem.